Enquanto lavo os morangos, penso na água fria molhando meus dedos. É importante que os morangos estejam limpos, mas eu demoro mais que o necessário com eles na torneira, porque a água me leva de volta à infância.
Quando era um menino, acordava sempre às 5h30, tomava banho, ajuntava minhas coisas e ia pro clube. Caminhava 10 minutos à pé, as ruas quase vazias. O dia sempre começava frio ou, sei lá, fresco (pra mim era a mesma coisa), independente do mês.
As aulas de natação começavam às 6h. Entre 6h e 7h ouvíamos (eu e outras crianças) o professor gritando instruções, fazendo piadinhas, explicando o que devíamos sentir, como o corpo devia responder à água. A água era sempre fria, principalmente às 6h da manhã. Depois, entre 7h e 8h eu podia ficar no clube, nadando à toa, brincando, passando o tempo com a cabeça debaixo da água. Não precisava interagir com ninguém. Era água e eu. Depois disso vinha a aula dos meninos maiores e eu precisava sair dali.
Guardo essa memória com muito carinho, porque sou uma dessas vítimas sistemáticas de bullying. O clube era um lugar onde eu era deixado em paz.
Não posso lavar os morangos pra sempre. Eu os deixo num prato e dou um gole na cerveja. Separo o gelo, vodka, o açúcar. Bato alguns morangos e os transformo em suco. Adoço. Coloco a vodka e misturo.
Não sei fazer isso com elegância, acrobacias, essas coisas. Talvez meu charme seja essa completa ausência de charme.
Sirvo um copo, esperando que esteja bom. Nunca vou saber, não gosto dessas coisas.
Pego um morango e começo a cortar em fatias. Quanto mais finas, melhor. Pra isso é importante ter uma faca bem, mas bem afiada. Caso contrário, a gente tem que apertar o morango e tudo se transforma num desses pequenos desastres.
Espeto as fatias e as equilibro na borda do copo, pensando que eu devia ter pensado em usar açúcar na borda, ia ficar bonito.
Coloco o copo na mesa, Clara sorri aquele sorriso bonito e pega. Pela cara que ela faz, sei que acertei.
Fico de costas pra ela e abro o forno, pra conferir a carne assando. Não precisava. Virei porque a culpa me obrigou. Pode ser o bullying. Aliás, acho importante culpar o bullying. Anos me sentindo um merda, sendo tratado como merda, têm consequências.
Não me sinto no direito de fazer o que eu quero fazer. Esses anos escolares fazem eu não saber se quero fazer o que quero. Levanto o papel alumínio que envolve a carne. Rego a parte de cima com o suco que o papel reteve. É um ritual que eu domino, mesmo sem muito equilíbrio, enquanto estou abaixado. Minha falta de charme pras coisas.
Quase caio pra trás, de bunda. Ela ri.
Era pra ser uma situação normal. Eu devia rir também, mas alguma coisa dói no riso dela, esse riso direcionado a mim. Me forço a rir com ela e fecho o forno. Respiro fundo. Penso na piscina, a cabeça embaixo d’água, o corpo em movimento (desajeitado, mas funcional) e penso no que há pela frente.
Meço a situação, o quanto ela bebeu da vodka com morango, o quanto eu bebi de cerveja, quanto tempo falta para a carne ficar pronta e determino qual seria o melhor momento pra começar a discutir sobre um divórcio.
Texto escrito a partir da ilustração de Val Armanelli. O blog dela está linkado na seção “Mundo Cruel” à direita.