::Dark Star crashes::

Acordei hoje de uma maneira astrologicamente mais estranha que os outros dias. Meu coração estava em paz e por um momento eu consegui me esquecer de que ele estava ali. Sem uma razão aparente Muddy Waters me pareceu bem mais atrativo e eu o ouvi. Tudo tem sido de uma simplicidade negra e antiga, de quem podia se expurgar através da música. A maré está voltando demais e demais.

::Carta ao irmão de Teo::

Jamais não jamais. Pobre Vincent, não sabia que seu Deus estava morto, que seu amor não era nada e que era apenas um louco pobre e mal quisto. Jamais não jamais. Um iceberg de indiferença, um outro universo, um do qual ele não fez parte, não era a vontade dos homens nem a sua fazer parte disso. Era pequeno demais, medíocre demais. E aquele jamais não jamais era tão enorme e tão profundo, expressando todo o peso da sinceridade, essa que Vincent evitava, de onde ele loucamente procurava fugir. Ele não iria fugir e não sabia. Ou talvez soubesse, mas não quisesse admitir pra si que o universo existia enquanto uma obra fora, completa, perfeita, ainda que ele não fosse responsável por isso. Responsável pelo movimento do universo, pela vida das pessoas, pelos sentimentos das pessoas. Jamais não jamais e ainda com o peso de ser irresponsável pela vida das pessoas. Você não era, amigo Vincent, responsável pela vida de ninguém e isso lhe doía, eu sei. Amigo? Pode-se ser amigo dos mortos, eu pergunto, amigo desses que se retiraram levando sua vida e nosso destino sob os braços? Não sei, mas gosto de pensar em você, Vincent, como alguém próximo, com problemas e garantias parecidas com as minhas. Mas seu pecado é o pecado de outrem, e dele me enojo por isso, porque sei que a fé não é o subsídio da existência, mas a existência é um subsídio de fé. Você se descobriu pequeno e nu, solitário num local onde nevava durante o inverno e sua nudez arroxeada aumentava ainda mais o sofrimento do grande iceberg jamais não jamais. Eu sei disso porque sei que o mais apertado dos abraços pode não ser um abraço estreito como um leve roçar de dedos que irá se encaminhar para um dar as mãos desesperado e incontido. Amor é, amigo, livre das convenções como o sempre e sempre, como o nascer, o morrer e o crescer, livre das intensidades e do tempo. Ama-se porque existe e assim é e assim será. That´s the truth, that´s my belief. No entanto você não podia aceitar a verdade pesada e solitária de que a indestrutível geleira, fosse uma convensão ou não, era nada mais que um não-amor. E um não-amor não é pra ser amor simplesmente por isso mesmo. E no fim foi isso, tudo poderia ser completamente diferente soubesse você das inexistências amorosas que rondavam os corações que não eram o seu nem o meu. Tudo isso que digo a você que nunca me viu, não existe mais e se foi antes mesmo de um tempo em que deveria ter ido e ainda assim é bastante anterior ao meu, vem porque seu pobre jamais não jamais me remete a outro termo de uma inocência quase feliz, mas tão e tão desesperançoso quanto. Despeço-me.

::Verdades cruéis::

E então eu encontro num livrinho de bolso de Florbela Espanca um poeminha besta, desses que servem como um dedinho de álcool na grande fogueira da guerra dos sexos. Chamo uma das mocinhas que trabalha comigo na livraria e mostro.
_Que fique bem claro que não sou eu. Isso está sendo dito por uma das maiores e mais criativas poetisas da língua portuguesa!
Ela faz a mineira cara de “lá vem…” e pega o livro, na página marcada, para ler os seguintes versos:

Acreditar em mulheres
É coisa que ninguém faz;
Tudo quanto amor constrói
A inconstância desfaz.

Hoje amam, amanhã esquecem,
Ora dores, ora alegrias;
E o seu eternamente
Dura sempre uns oito dias!…

De acordo com o que eu poderia prever, ela faz uma cara entre divertida e decepcionada e solta um choroso “nooooossaaaa…”.
Relê o poema ainda uma vez e pergunta, agora com uma expressão séria, científica:
_Você realmente acredita que é assim que funciona?
Admito que não estava preparado pra pergunta, pensava na coisa com uma boa dose de bom humor e por mais que os versos me ferissem também, por culpa do passado, na prática eu acredito que não se salvam nem homens ou mulheres no quesito sinceridade e perenidade dos sentimentos. Mas sob breve reflexão percebi que o mundo não ajudava meu pensamento do mundo, sendo obrigado a responder o seguinte:
_Como conceito não. Acredito no amor e nos sentimentos femininos. Espero por eles, na verdade. Só que, infelizmente, na prática, nunca conheci nenhuma mulher (sem qualquer exceção) que não se comportasse tal e qual conta a Florbela Espanca. O que é um pouco triste.
A vida continuou e cada um de nós tinha seus clientes pra atender e livros para colocar nas estantes. Mas acho que ela não esperava exatamente essa resposta.

::problema::

De novo órfão de um livro. Eu sinto um leve desespero quando acaba um e há milhares pra serem lidos, mas nenhum especificamente excitante.
Ultimamente há uma constância nos personagens de todos esses livros que leio. São homens loucos e solitários, que não vão se adaptar ao universo porque a sensação de vazio os come de dentro pra fora.
Estou com medo disso e ao mesmo tempo viciado nisso. “Nada de novo no front”, “A invenção de Morel”, “Pulp”, “Os subterrâneos”, “A arte de produzir efeito sem causa”, “The catcher in the rye”, “O evangelho segundo Jesus Cristo”, “O jogo da amarelinha”, “Almas mortas”, todos envolvidos numa mesma fumaça de solidão e distúrbios mentais. A solidão masculina, a eterna magra e ingrata solidão masculina.
Acho que preciso de um livro de mulherzinhas. Estou órfão de mais um livro…

::Goodbye pork pie hat::

Pra variar chovia e fazia frio. Era noite também, o que costuma fazer diferença. A vida era ruim porque a chuva era verde, mas isso não era exatamente importante pro gordinho desajeitado que subia a rua. As roupas muito largas estavam ensopadas e ele andava lentamente, tremendo, carregando debaixo do braço um pedacinho de esperança, desse tipo ainda meio cru que a gente chama de sonho. Um gordinho triste se arrastava pela chuva com um sonho do qual havia se resignado a abandonar em algum canto. Não me perguntem que diabo de sonho era aquele, ou o porquê de abandoná-lo. Ninguém se lembrou de perguntar então. Mas não é assim simples e o gordinho subia a rua, uma avenida suja, sem pensar em nada, sentindo o peso de seus problemas ali, apertados em suas mãos macias e estufadas. Como ocorre nos momentos mais oportunos e mais inoportunos a avenida desertificou deixando-o sozinho com o verde da vida e o verde da chuva. Ele olhou prum lado ao mesmo tempo que soltava o sonho num canto qualquer. O lado era o que ele escolheu pra chorar. Era agora um gordinho solto na chuva chorando à porta de um edifício. Chorou pouco porque tinha vergonha e voltou a observar como as pessoas de repente voltavam a passar por ali. Num desses intervalos a gente se prende numa ou outra forma que se torna importante porque a gente se prende a ela sem um motivo espiritual aparente, apenas preso. Era uma moça esguia, de olhinhos de gato e gosto de doce de leite. debaixo de um pequeno guarda-chuva, ela fazia com o verde se escondesse nos cantos a invejando, apesar das milhares de garotinhas como ela, com seus olhinhos de gato e sabores de compota. Fixados como estamos é fácil perceber que ela nota o sonho do primeiro personagem na sarjeta e perde um infinitésimo de segundo pensando naquele sonho de uma forma qualquer. Ela para em frente a ele como se subisse a rua pra isso e não subiu. Apanha-o sabendo já o dono do sonho. “Isso é seu.” “É, mas eu não quero mais.” ” Não se abandonam sonhos, eu levo o seu sonho comigo.” O gordinho, muito em silêncio e muito sem ainda conseguir abandonar assim o sonho pelo que chorava mais cedo vai pra debaixo do guarda-chuva. Ainda se molha, mas é quente e ele pode ver as más cores que se escondem do lado de fora. Por um momento é noite, chove, faz frio e o mundo é triste, mas isso não importa. Nada importa, nada é o que é. Tudo tem gosto de doce de leite e todas tem olhinhos de gato. Mas a noite acaba e é dia. Nosso rechonchudo protagonista sai de casa e observa o sol, já sem nenhum sonho. Não pegou o endereço da mocinha e isso nem importa. Ele olha o sol e sabe que quem a trouxe foi a chuva, que ela provavelmente mora na chuva, mora no acaso dessas coisas que não se repetem. E ela é quem levou seu sonho embora e por um momento isso faz dele uma pessoa feliz e uma pessoa triste e nos momentos seguintes não poderemos determinar o quanto dessa felicidade é realmente responsável pela tristeza do presente.

::Versos de bom dia::

Há coisas que conseguem rasgar um certo véu de tristeza e pessimismo ao qual a gente se enrosca quase sempre. Quando ocorre de alguém conseguir isso eu me sinto meio que grato, mesmo quando eu não tenho a mínima idéia de quem foi ou quais foram os motivos. Eu não tenho versos de bom dia. Meus bom dias são tiros à queima roupa, com sorrisos rasgados e um sei lá de esconder que eu sei que o mundo não é bom,  mas eu pretendo iludir-vos de que tudo ainda pode dar certo. Mas eu conheço alguém com versos de bom dia e nada mais justo que colocá-los aqui. E essa é uma homenagem a alguém que eu não tenho a mínima idéia de quem seja:

Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
olhava e sorria:
‘Bom dia!’
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina,
a mais sábia menina.
E Maria
apenas sorria:
‘Bom dia!’
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com você de amizade:
‘Bom dia!’

(Cecília Meireles – As Meninas)

::manifestinho despreocupado::

É de madrugada que nós conseguimos sermos. Assim mesmo, com o ponto final e tudo. O ar frio incomodando os antebraços nus e o cheiro constante de cigarro emanando das roupas. Bêbados, seguimos a lua, recitando uns versos vagabundos que nós, juntamente com os outros pagãos, achamos maravilhosos. Maravilhosos! Ouviram, envagélicos? São simplesmente lindos, esses versos. Católicos, budistas, grandes poetas da língua dos homens, dos anjos e dos demônios, fica aqui estabelecido que são lindos meus versinhos de pé quebrado, fica dito e achado lindo que não importa mais se é em público ou não, que nós vamos nos mover e procurar carícias e sexo, bebida e alegria, generosidade e contentamento. Somos pagãos. Deus? Deus? Ele anda conosco e é um de nós. Não o adoramos porque é um de nós. Somos pagãos porque não adoramos a Deus. Porém, é a nós que ele segue com um sorriso de canto de lábio e muitos planos que tem preguiça de realizar. E Deus tem também um recado pra vocês, que esperam que ele faça algo: Deus não tem mais nada a ver com isso. Deus não os quer! Não quer ser adorado. Vão cuidar de suas próprias vidas e deixem-no em paz! Vão distribuir comida, renda, conforto entre vocês, entre os miseráveis da terra. Deus bebe até desmaiar ébrio e acorda com dor de cabeça. Muita dor de cabeça que só piora com a cantoria (Jesus Cristo, que maldita cantoria é essa?) de vocês. Deixem-no dormir com a luz apagada, por favor. Não lhe mostrem a manhã. Não cheguem a ele as crianças que choram, que sofrem. Vamos, humanos, resolvam vocês esses problemas. Deus é um grande meu amigo e está abraçado à minha irmã. Somos todos lascivos e desafinados (péssimos, péssimos, péssimos poetas). Aos homens os problemas, doenças, dúvidas e descrenças dos homens. À Deus um pouco de paz e irresponsabiblidade. Céticos, ateus e agnósticos: vão todos se foder. Vocês são um câncer em nosso mundo tuberculoso. É de vocês a culpa da perseguição e da falta de paz. Vocês são o outro espectro radical da violência e bestialidade. Um crente deseja a morte e um cético puxa o gatilho. Nenhum religioso dorme sedento de sangue enquanto houverem em número suficiente os céticos que os sirvam até o esbalde. Não havendo suficiente razão na desrazão metafísica e nas letras das canções, resta perguntar o que fazem por aqui os ateus, que não se matam logo de uma vez? Deus odeia os homens religiosos e vocês são os culpados pela religião e pelas mudanças climáticas. Um amigo meu se encontrou ontem ainda com Deus que confirma tudo isso que eu digo. É na madrugada que somos. Por isso a madrugada é um horário tão propício ao sexo. Tão propício ao sono. Tão propício pra que possamos nos mostrar como somos. Nus, animalescos, carinhosos. Nos perdemos em nosso fingimento (quantas, eu perguntei à Deus, fingem e ele não soube responder), ao nosso animalismo, não há diferença entre instinto e inteligência. Não se dissocia a razão da emoção. Pobres filósofos que não podiam ser nem a noite. Que separavam-se inutilmente na tentativa vã de dar formas aos conceitos de ciências. Sentir, amigos filósofos, é pensar. Estavam certos os músicos e tocadores de instrumentos. Há muita verdade explícita na microfonia e distorções de guitarra. O resto são paradigmas. A melhor forma de deixar de sentir é deixar de pensar. A melhor forma de deixar de pensar é acreditar em algo ou meditar sobre o vazio. bebemos com Deus para que não sintamos muito as coisas que estamos pensando. Ou para que tentemos sentir sem pensar, o que é contraditório. Mas ainda assim, apesar das dores de cabeça e da polícia que nos prendem enquanto trepamos nas portas das igrejas, nos tentamos sentir sem pensar. Pensamos ao contrário na esperança de que pensar ao contrário seja não pensar e apenas sentir. Somos com isso, simplesmente estúpidos, obviamente. Mas que fique claro que nem só de beleza há o que há e o que é o homem. Inclusive nem só da busca pela beleza e felicidade, visto que nos matamos e nos atormentamos assim, com tanto veneno. Não, o homem não é como a naja de veneno mortal e irremediável. O homem é nada mais que um marimbondo, um escorpião. Uma picada dolorida, inchada e plenamente curável (para que possam haver outras, penso) é o que se obtem do homem. Nada mais. Por isso a vida acaba se arrastando e se consertando. Ou porque ela é nossa. Estranho, mas é. E nós aqui, tentando entregá-la aos outros. O problema é sempre esse. O que fazer da vida. Mas se eu pergunto isso à Deus, seria um crente? Ou não seria, mas no caso de desobedecer às suas respostas? Fica aí minha dúvida. Não chamem a polícia, trabalhadores, que eu vou achar minhas marquises. Eu me deito, Deus se deita com minha irmã, suas mãos traiçoeiras entre as pernas dela. Deus, meu Deus. Vamos dormir e deixar os homens existindo em paz. Não, eles não farão o mesmo por nós.