::crônica do mundo cruel::

É um rapaz que diriam ser bonito. Cabelos curtos e louros, armados com gel em milhares de pequenas espigas  e a pele muito branca (levemente esverdeada) com algumas poucas sardas no nariz e bochechas. Tem o nariz fino e um olhar petulante de quem cresceu ouvindo pouquíssimas negativas ao longo da vida. Tipo do sujeito que cresceu mandando.
Está metido numa calça muito larga, cheia de bolsos e um par de tênis coloridos, cheios de furos, detalhes, entalhes amortecedores místicos, com motores de propulsão a jato. A camisa, um uniforme de um colégio particular qualquer. Tudo isso, somado ao celular ligado à fones de ouvido exalando new metal, fazia a mais perfeita cena do tipo de adolescente muito rico que costuma frequëntar o shopping onde eu trabalho.
Ele entra pela loja e para encarando o terminal de consulta. Olha atentamente até entender que os comandos funcionam com touchscreen e começa a digitar e franzir o cenho, dedando a máquina de quando em quando.
Eu o deixo fazer isso porque é bom pro crescimento das pessoas perceberem que não, elas não são capazes de operar mecanismos incrivelmente simplórios sem que uma terceira possa dar instrunções apropriadas.
Então educadamente ofereço ajuda.
Ele não está olhando pra mim, está me avaliando. isso é muito comum nos clientes, tentar decidir com o olhar qual o meu grau de instrução, os nomes dos meus pais ou das escolas que eu frequntei. Todas essas primeiras impressões tendem a mudar depois de conversarmos um pouco, mas também acho isso educativo.
Eles precisam saber que não, eles não possuem a mínima capacidade de produzir julgamentos sobre a realidade em que vivem.
_Você tem algum livro do Kropotkin?
Eu faço um movimento que sugere que talvez eu precise usar o computador atrás dele e ele se move e fica parado ao meu lado, torcendo pelo meu fracasso, a única coisa que serviria de álibi para o fracasso que acabou de cometer ao não saber utilizar o terminal de consultas. Assim que eu coloco os dedos no teclado ele começa a soletrar “K-R…” enquanto eu escrevo o nome “KROPOTKIN” de uma só vez, sem olhar para ele e me surpreendo com vários registros surgindo na tela. Felizmente, todos zerados.
A maioria das pessoas se dá por muito satisfeita com o próprio analfabetismo funcional. Meu cliente novamente perde algum tempo analisando atentamente os resultados em sua frente pra perguntar em seguida se eu poderia mostrar-lhe os livros que estavam ali na tela.
Diante de meu sorriso assalariado e servil que nega e explica que “os estoques de todos eles estão marcados como “zero”, isso significa que eu não os terei na loja, senhor.” ele precisa fazer o que considero um esforço hercúleo para que sua interpretação do mundo (que é uma projeção de sua vontade) se encaixe naquilo que estamos acostumados a chamar realidade (e funciona de maneira muito diversa para cada um de nós). Não há nada de pejorativo no meu “senhor”, eu o acrescento por praxe. Vícios, todos temos.
_Tenta então Proudhon.
Proudhon, apesar de não ser soletrada, foi dita bem devagar, que era pra eu entender.
Novamente, nada. Nenhuma obra e nova explicação, seguida de protestos sobre a minha livraria nunca ter os livros procurados e blábláblá. Blá.
Num mundo ideal eu o teria atacado tão logo pedisse o primeiro livro e o colocado pra fora do shopping depois de machucá-lo bastante. Uma vez que o mundo não é ideal, simplesmente observei suas roupas, sua procedência e o local onde meu cliente esperava encontrar obras sobre a anarquia, enquanto o mesmo se afastava. “A propriedade é um roubo”, pensei. “Pra sorte dele e só dele, ninguém precisa saber disso…”.

::Sobre as formas e a forma::

Vês agora que nós, poetas, não podemos ser nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo é mentira e estupidez(…)“.

(MANN, Thomas. Morte em Veneza. 2.ed. Rio de Janeiro: NOva Fronteira,2000.)

::Depois de muito ler Kerouac…::

Era uma vez um monge budista muito bom naquilo que fazia, sendo, praticamente, faixa preta em budismo. Como é simplesmente com a maioria dos budistas de verdade, que evitam lojas de conveniências, livros caros e comida natural, o sábio monge gostava de se isolar, meditar e observar a natureza, amando e chamando tudo de vazio. Certo dia, caminhava o homem Buda pela floresta e enquanto cria que tudo aquilo que era projetado pela sua mente e não existia era lindo e fantástico, deparou-se com uma montanha. “Uma bela montanha que merece ser escalada” lhe ocorreu. Careca, forte, ofegante e sujo, subia o monge alaranjado montanha acima, desconcentrando-se de toda a filosofia e sentindo com muita força o mundo que se forçava sobre ele mesmo. Era necessário parar e rezar, parar e pedir, parar e entender que nada e absolutamente nada era real e apenas Buda era a verdade. O vazio, mas um vazio que doía como o inferno em suas pernas. Ao atingir o cume da montanha, a agora pequenina figura do monge foi recompensada por uma nascente fresca, uma macieira e sombra para todo o sol e calor. Enquanto sentia sua mente recompensando-o, tomou um susto: havia mais alguém ali, estendido na terra, olhando pra cima e aproveitando tudo aquilo tanto quanto ele. “Olá senhor, sou um monge. O que faz sozinho aqui no alto da montanha?” O sujeito olhou e abriu um meio sorriso preguiçoso, do tipo que é apenas um vãozinho por onde passa amistosidade.”Olá monge, sou um peirciano e estou aproveitando aquilo que posso da realidade desta montanha.”
Monges budistas, mesmo os muito bons, tendem a se sentir magoados quando suas crenças mais profundas são assim abaladas por tão pouco. “Mas não há realidade e nem montanha, senhor. Tudo isso é uma invenção de sua mente, uma mentira necessária à evolução kármica. São seus sentidos que imaginam aqui uma montanha.” O peirciano olhou-o sério como todos os pragmáticos fissurados pelo rigor científico e respondeu. “Certamente são meus sentidos que projetam os signos da montanha em minha mente. Mas para que façam isso, têm todos eles que receber um estímulo externo. Não é uma mentira a realidade que vejo, apenas uma meia verdade, que é a interpretação que sou capaz de fornecer de um mundo real e imutável que nos cerca. Sendo assim, só posso ver a montanha e sentir a montanha e entender a montanha porque há um montanha a ser vista e entendida pelo meu ser.”
Os dois se maravilharam por um momento com a importância que ambos davam aos sentidos, dentro de suas próprias filosofias e como ambos consideravam os sentidos humanos culpados pela incapacidade de enxergar a verdade. Em nome disso, mais tarde, ao descer da montanha, encheram a cara de cerveja e se despediram prometendo repetir a dose. E a lição é: nem sempre há lições, nem mesmo nas coincidências. O budismo continuou sendo budismo e a semiótica de Peirce idem, mas tudo isso foi muito bom.