::a song for Jeffrey::

Eu já sei que não ia dar certo, então o melhor é isso. Conheço você bem demais pra saber que convidar você a vir comigo seria o mesmo que desafiá-la a cometer essa sandice. Às vezes isso me entristece um pouco, pensar que existem milhares de maneiras diferentes de ver o mundo, de entender a realidade, de construir uma vida e logo a minha é a que não combina com nenhuma das outras. Porque eu sou egoísta demais, você diria. Talvez, mas a base desse meu egoísmo é a incapacidade (e extrema falta de vontade) de me dobrar à isso que uns chamam de convenções. Por exemplo, minha idéia é ir de carona sempre pro norte, sem nenhuma certeza de até onde eu posso ou quero chegar, pode ser Belém, pode ser Cuba (basta aparecer um barquinho disposto a me levar de graça). O carro eu vendo amanhã mesmo, uso o dinheiro pra comer e dormir durante o caminho. Qualquer pessoa (e nesse caso a certeza é a de que você seria qualquer também) me tomaria por um idiota. E egoísta, por não conseguir pensar como os outros, por não querer ser como os outros, que insistem em comprar o carro e ir para o Rio de Janeiro. Estou limitado pelo meu corpo e pelas minhas vontades e pelo meu pensamento. Só vejo aquilo que meus olhos enxergam e quando todos se distanciam a única voz que não me abandona é a minha voz.
Antes eu não ligava muito, mas tenho tido que explicar isso tantas e tantas vezes que eu mesmo me sinto estranho, confessando o grande crime que é acordar pela manhã e pensar “sou eu mesmo. De novo”.
Você vai conhecer um sujeito numa festa, esse sujeito vai comentar que viu um filme muito bom (um desses que eu não assisti) e você vai logo se interessar. Ele vai perceber que para lhe agradar vai ter que se esforçar e gastar toda a cultura dele com você, que vai se impressionar pelo fato de isso não ser pouco. Conversarão a festa toda. Enquanto falam, bebem e enquanto bebem, estarão cada vez mais interessados um no outro. As visões de mundo, política e religião de vocês dois serão diferentes e por isso vocês vão discutir, mas nada que a obrigue silenciar diante dele, como quem congela de asco ao ver uma coisa tão bizarra e fora dos padrões que o silêncio é a única forma possível de interação. Em pouco tempo farão planos. Para um encontro, para uma viagem (uma viagem talvez parecida com as minhas), para um filho. Eu imagino que funcione assim porque é o que eu vejo todos os dias. Sempre amanhece. Sempre há planos.
Eu? Como eu poderia fazer planos se a cada manhã essa mesma manhã traz pra mim coisas de além dos meus próprios sonhos? Não. Vou-me embora sem planos. Já não sei para onde.

 

 

 

 

Não quero.

::and the mouse police never sleeps::

Deus está nesse momento sentado na cama e tocando flauta. Aos seus pés se encontra uma garrafa de vinho seco, já pela metade. Ele tira da flauta um som muito bonito e pensa no que eu acabo de dizer a ele, sobre as pessoas e a infelizidade. Então ele pára, faz uma cara muito amargurada e diz choroso:
_Mas eu não tenho nada a ver com isso…
_Tem uns livros que dizem que você e mais ninguém tem algo a ver com isso.
Ele me encara, mas com olhos muito vagos, como se observasse alguma coisa atrás de mim. Pega a garrafa no chão e dá um gole generoso antes de me entregá-la para fazer o mesmo. Limpa a boca com o braço e baixa o olhar pros pés.
_Olha, dentro de um certo ponto de vista, a culpa é minha mesmo, porque eu é que cismei de inventar tudo. Mas por outro lado, a partir do momento em tudo estava aí, pronto, eu deixei de ter poder sobre as coisas. Eu nunca quis ter poder sobre as coisas!
Por ter percebido que ele ia começar a se explicar demais e que isso significava o fim dos solos de flauta, resolvi ligar o som. Ficamos os dois num silêncio de expectativa diante de todas as músicas do universo. Eu escolheria as primeiras, ele colocaria outras. Era um jogo. Jefferson airplane começa a cantar e nós acompanhamos

“I-I oughta get goin’
I-I shouldn’t stay here and love you
More than I dooo
‘Cause you-ou’re so much younger than I am
Come up the years
Come up the years
And love me… love me, love me!!!”

_Mas continuando, a existência dessas coisas todas é a existência exatamente de algo que não seja eu, daquilo que é exterior e separado de mim, já que se fosse para que eu me desdobrassem me conhecendo e continuasse a ser isso não faria sentido e eu continuaria e perceber que tudo era óbvio por tudo ser apenas uma face da minha vontade. Então eu percebi que a existência de algo separado de minha vontade resentava uma oportunidade de observação, percebe?
_E daí você inventou os homens?
_Não. Daí eu inventei a existência. o princípio pelos quais as coisas se dispõem. O resto é acidental.
O diálogo com Deus é esse, repetitivo e desencontrado. Tudo isso saiu entre intervalos para vinho e até um momento em que ele soprou na flauta verde a melodia da música. Então magicamente Grateful Dead apareceu com Dark Star. Abrimos oura garrafa, uma nova garrafa de bebida para acompanhar os longos minutos com essa música avança nos fazendo pensar em tudo que se encontra muito distante porque simplesmente já aconteceu. E eu observo Deus deitado na cama com os braços abertos balançando a cabeça de leve e me pergunto se essa é realmente a sensação dele, se algo pode em qualquer instância estar distante ou separada de Deus. Segundo ele, pode.
O avançar das músicas, dos grupos, do álcool em nossa corrente sangüínea, tudo isso ia nos fazendo mais angustiados, mais aflitos, mais inutilmente tristes. Aí eu percebo que tenho diante de mim um Deus chorão e sujo de vinho e ranho e ele lamenta:
_Eu não tenho nada a ver com isso, Ismael… quando eu percebi, achei melhor me isolar. Não é minha culpa…
Mas nós dois sabemos que ele chora porque a culpa, de alguma forma, é sempre dele.