::I know you are, but what am I?::

Entro em casa sentindo o corpo pesado e sujo. Carrego nos ombros os clientes, pessoas nos ônibus, os pedintes, todo o barulho da rua, meu próprio suor, o peso da jaqueta e da mochila velha.
Mesmo tão preso em mim, noto algo errado na casa, os barulhos estão mal distribuídos e diferentes. Melhor ignorar, por enquanto. Jogo a mochila e a jaqueta no chão da sala, vou pra cozinha, onde não acho ninguém.
Abro a porta da geladeira e fico olhando pras prateleiras quase vazias. Pego a manteiga e antes de fechar a porta, continuo encarando o interior da geladeira, esperando, como se uma refeição maravilhosa fosse se materializar do nada e eu pudesse trocar a manteiga por ela.
Sigo ignorando as pequenas manifestações de vida na casa. Não consigo lidar com o que sei, ou acho que sei, que está acontecendo. Mastigo pão com manteiga contrariado pela garrafa de conhaque vazia na mesa, de frente pra mim. Sei que debaixo da pia alguém esqueceu uma garrafa de cachaça. Termino o pão e começo a procurar. Vila Velha, uma das maiores atrocidades que o capitalismo fez contra os trabalhadores.
Sirvo um copo, seguro o fôlego e bebo. Bebo de duas vezes, porque tenho pena de mim mesmo. Se eu tentasse virar tudo de uma vez, corria o risco de vomitar na mesa. Prolongar o sofrimento por mais que duas goladas seria masoquismo.
Encontro João no quarto, sentado na cama, abraçado aos joelhos. Olha pro nada e chora baixinho. O violão dele está na minha cama.
Pego o violão e coloco com muito cuidado no suporte no chão.
Os olhos do João me acompanham, mas ele não se mexe nem para de chorar.
Eu não sei porque o João chora. Mas imagino que as pessoas que prefiram o silêncio, que prefiram a música, tenham muitos motivos pra chorar.
Eu podia sentar e chorar com ele, mas não estou no clima. Ou melhor, estou sempre no clima pra chorar, mas falta força. Aquele ânimo necessário pra buscar todo o lodo dentro de si e colocar pra fora, como um vômito efêmero.
Chorar dá trabalho. Eu continuo seco e sério, deixando João chorar por nós dois até cansar.
Quando ele para, se levanta e coloca a mão no meu ombro. Os olhos estão vermelhos e inchados, mas serenos. Eu não vejo o meu rosto, não sei se disfarço a tristeza, ou se pareço mais arrasado que ele.
João alonga os braços, estrala os dedos, pega o violão e sai, limpando o nariz na manga da camisa. Eu resolvo que preciso tomar um banho.

*O título desse texto é o título de uma canção da Mogwai

::Like Herod::

A literatura é sempre um flashback de alguma coisa.
A gente pode escrever pra não chorar. Ou ainda, escrever exatamente porque chora (chorou/chorará) escondido. Me pergunto: é possível chorar de novo, depois de escrever?
Começa o flashback: Meus pais são bancários em bancos diferentes. Os bancos vendem produtos e muitas vezes sugerem esses produtos de acordo com o modelo de negócios do cliente. Todos os produtos bancários são uma coisa só, assim como bancos diferentes são sempre o mesmo banco. Todo produto é uma mentira porcamente elaborada pra vender o único produto que um banco é capaz de vender, uma dívida.
Departamentos de marketing todos voltados para convencer as pessoas de que “se você fizer uma dívida com nosso banco, será feliz!”. Só é possível ser próspero se endividando. Para ter dinheiro é muito importante dever dinheiro.
Conhecendo bancos e seus produtos fui até um deles e disse que era um jovem empreendedor. Por mais que eles sejam tarados com esse tipo de palavra (empreendedor, estratégico, valor agregado, sustentável), isso só não serve.
Por isso, antes, tive o trabalho de falsificar umas assinaturas do meu pai, tirar uns xerox de vários documentos e ajuntar com o dinheiro do meu salário de office boy para fabricar meu perfil de jovem empreendedor.
Escrevi um projeto, também. Muito bonito, aliás, uma mentira muito bonita, já que todo projeto que se apresenta a um banco é uma promessa de matança (está na história do mundo, não só nos bancos. Religiões, avanços científicos, grandes discursos, Os Sofrimentos do Jovem Werther… Sempre que alguém fez algo que deu muito certo, morreu gente pra caralho).
Você pede um dinheiro que deveria ser usado para comprar leite, roupas, construir casa, adquirir remédios e usa (ou diz que vai usar) para comprar um mostruário de piercings, alargadores e outros adornos corporais. Explica que as pessoas têm se interessado mais e mais por esse tipo de produto, que pode trabalhar de casa e visitar os clientes, que não pretende fazer os furos nas pessoas, só vender as jóias. E que pra esse sonho dar certo, precisa de dinheiro, uma máquina de fax, anúncio na lista telefônica, cartões, placa de PVC com aplicação de vinil em 2 cores.
Você apresenta uma falsa lista de possíveis clientes já sondados. Explica que o negócio é viável e que a dívida com certeza se transformará num negócio lucrativo e que aquela será a primeira de muitas dívidas e eu serei feliz e os gerentes serão felizes e o departamento de marketing continuará a vender sonhos e nos fazer de otários. E funciona.
Todas as vezes em que escrevi “você” queria dizer “eu”, então, aos 17 anos, consegui uma linha de crédito direcionada a jovens ambiciosos em busca de oportunidades.
Quando o dinheiro caiu, comprei uma garrafa de conhaque e fui atrás do João. Fomos pra praça da Assembleia, beber e conversar. Mostrei a ele os contratos e expliquei a história toda. Por fim, expliquei que só faltava o fornecedor.
“Você conversou com a sua mãe? Ela concordou em me ajudar?”. Ele fez que sim com a cabeça.
Não senti nenhum alívio. O conhaque aumentava o peso da culpa que eu carregava ali e eu tinha certeza que a Luciana carregava o dobro daquele peso. Eu sabia que precisa falar com a mãe do João. Eu tinha que dar um jeito.
Depois de matar aula e trabalhar de ressaca, fui até o condomínio do João, pra falar com a mãe dele. Ela me recebeu com um abraço apertado, sem sorrisos e nos sentamos como cúmplices. Ela apertou minhas mãos com força, me encarou muito séria e perguntou “vocês têm certeza?”.
Não. Eu não tinha certeza de nada. E Luciana, dizendo que tinha, provavelmente só tinha medo. Pânico. Pavor. Descontrole. Quem tem certezas aos 17?
“Sim, temos sim”.
“Você está com o dinheiro aí com você?”
Fui pego de surpresa com a pergunta. A coisa era muito mais rápida que o que eu imaginava. Pedi desculpas, falei que não sabia que já tinha que ter sacado.
“ok”, ela disse “A gente passa na agência e depois vai até minha amiga”.
Fiquei perdido no tempo. Tudo começou a se mover muito devagar. E a girar. Parei de raciocinar comecei a ser arrastado pela mãe de João, tentando de tudo pra não demonstrar que estava em pânico. Tenho certeza que ela percebeu, mas tenho certeza que, naquele momento, ela não se importava comigo.
Desci na agência, fui até o caixa e conferi. O dinheiro do crédito estava na minha conta recém aberta com uma autorização falsificada do meu pai. Tentei sacar tudo, mas o caixa eletrônico não deixou. Precisei enfrentar a fila e mostrar o contrato para o caixa. Ele notou que eu suava, apesar do ar condicionado na agência.
“Você não está bem, menino. Vai pra casa. Deixa pra comprar suas coisas depois.”
Acho que não respondi. Sei que voltei pro carro. A mãe do João me esperava fumando, em pé do lado de fora. Talvez ela estivesse nervosa, mas eu não sei dizer. Tudo pra mim era eu, naquele momento.
Ela ligou o carro e fizemos uma viagem infinita até Santa Luzia. Fomos até um hospital. Uma construção grande e triste, com todas aquelas janelas escondendo gente doente. Pessoas morrendo mais que nascendo. Parentes andando em silêncio pelos corredores. Fantasmas tentando entender o que tinha acabado de acontecer a eles mesmos.
Quando ela parou o carro, eu me sentia velho, cansado, com muito medo. Estava dominado pela sensação de que fazer algo ilegal era fazer algo muito errado.
“Me dá o dinheiro e me espera aqui no carro. Eu volto num instante.”
Acho que foi rápido. Enquanto ela estava no hospital, fiquei me perguntando se ela já tinha feito isso outras vezes. Se estava ali de novo. Se eu teria que voltar ali em algum outro momento da minha vida.
A mãe do João voltou, me entregou um saquinho de papel pardo com uma cartela de comprimidos. Voltamos no mesmo silêncio em que fomos.
Antes de ir embora, agradeci. Ela me pediu cuidado, falou pra pensarmos muito e se colocou disposta a ajudar no que fosse preciso.
Meu projeto empreendedor e ambicioso estava quase no fim. Faltava ligar pra única cliente da lista que era verdadeira.
“Oi”, eu disse. Ela respondeu “Oi”. Suspirei. Ela suspirou. Ficamos em silêncio.
“Eu dei um jeito, Luciana. A gente precisa se encontrar”
Mais silêncio. Mas as respirações estavam bem fortes.
“É o Cytotec?”
“É o Cytotec.”
“Amanhã, depois da aula. Não mata a aula. A gente conversa depois.”
Dizem que um feto não é um ser vivo antes de 3 meses de gravidez. Que o aborto não é o mesmo que um assassinato, quando ocorre nessa fase.
Os que pensam o contrário, normalmente acusam as mulheres de serem insensíveis, de não saberem cuidar delas e dos outros. Transformam pessoas desorientadas, tristes, normalmente jovens e imaturas em criminosas sádicas. Não sei como Luciana atravessou aquela noite. Não faço ideia de como ela atravessou todas as noites depois daquela. Mas naquela madrugada, acordado, eu me sentia um soldado de Herodes, decapitando criancinhas. Me senti assim, por muito tempo. Talvez eu ainda me culpe, mesmo sabendo que, naquele momento, aquela era a única coisa que conseguiríamos fazer sem destruir as nossas vidas e as de todos ao nosso redor. Mas eu só ia me dar conta disso alguns anos depois, quando acabei reencontrando Luciana.
Acaba o flashback.

::autorock::

Tem uma frase, mas o importante não é a frase, é o que acontece ao redor. A frase descreve uma coisa como um pôr-do-sol, ou uma pessoa que caminha ou uma bomba que cai e arrasa diversos bairros numa cidade, mas o que acontece ao redor é que preenche a frase, que a torna viva. O sol se pôr não é nada sem os ônibus, os adolescentes em uniformes escolares, os carros e seus motoristas quase sempre imbecis, quase sempre tentando burlar uma lei de trânsito, quase sempre buzinando em momentos indevidos como, por exemplo, quando o sol se põe e nós não deveríamos prestar atenção em nada além do pôr-do-sol.
Ao redor da frase está a vida. Ninguém caminha no vazio, ainda que acredite nisso. A pessoa perde o emprego e acha que caminha no vazio. Descobre que contraiu AIDS do marido e acredita ter caminhado no vazio por todos esses anos. Recebe a notícia da morte da mãe, num acidente doméstico (algo como cair da escada ou tropeçar no banheiro) e tudo fica tão distante, opaco, sem importância que esse órfão recém nascido tem certeza de que caminha no vazio. Mas está errado. As coisas estão sempre ao redor. Ruas, pessoas e seus sofrimentos, homens com pressa e mulheres com medo. Olhar ao redor da frase é mais importante que ouvir a frase, que ler a frase, que escrever a frase.
Porque há um antes e um depois de toda frase, de tudo o que acontece.
Há o instante em que uma criança abre a geladeira e percebe um som distante, um tremor então ela morre. Ou o instante em que um homem saindo para trabalhar olha o relógio pela última vez antes de morrer. Uma professora imagina que vai se atrasar porque resolveu fazer sexo antes de sair de casa e goza com culpa, pensando nas crianças, mas nunca chega porque caiu uma bomba não existe professora, alunos, escola.
Há um terrível depois de tudo. Contagem de mortos, soldados, pessoas cegas, bombeiros, parentes em desespero, os mutilados, cavalos que gritam como almas de outro mundo e a notícia sobre os corpos de uma família que foram encontrados abraçados e mortos e os legistas descobrem que todos morreram juntos, antes da bomba, porque tinham se envenenado e essa é a tragédia.
A frase não é importante porque ela só serve para sustentar as coisas que estão ao redor dela e não para carregar o que seu significado nos diz.
A frase é simplória, circundada pelo mundo e frase nenhuma congela a força ou o movimento terrestre que nos enche com a ilusão de que é o sol que se põe e não nós.

::stop coming to my house::

Pela janela, carros, ônibus, aviões e um ranger que é como o de aranhas gigantes caminhando pelas avenidas. Pela janela estou muito mais lá que aqui, no quarto. A música, que está onde estou vem como algo distante em meio ao trânsito. Um delírio longínquo, uma coisa sonâmbula, que tenta me fazer voltar para o quarto. Há sonhos que nos despertam e há coisas espalhadas na realidade que tentam nos desligar o tempo inteiro. A música que vem do fundo do quarto e compete com o trânsito da cidade anestésica é assim, um estalo que nos devolve ao sonho. Ou ao sono sem sonho, o sono sem descanso, que é como a vida mesmo.
Não me pergunto pelos motoristas, porque sei que eles não estão lá. Assim como os tripulantes dos ônibus. Os ônibus param, as portas se abrem e nada acontece. Sobem fantasmas e fantasmas descem para ocupar a rua. Eu, na janela, no alto, não participo da não vida que observo. A cidade anestésica é isso, também. É não participar. Tento deixar a música fazer efeito, nunca sentido. O cenário recortado que a janela me dá e os sons longínquos que música do quarto transmitem aumentam minha sensação de alheamento, de torpor.
Não sei se usei algo, mas é como se. Os pés, meio soltos, porque os braços sustentam quase todo o peso do corpo no peitoril, reforçam essa ideia ébria, ou dopada, ou anestesiada. A cabeça pende para o mundo, sem uma intenção real de se juntar a ele ou a qualquer outra coisa. A música, cada vez mais presente, e a garganta, cada vez mais seca, vão me trazendo de volta ao quarto, aos cheiros do quarto, ao calor do quarto.
E ele é tudo o que tenho no momento.

::Hunted by a freak::

É noite e não se enxerga estrelas. Chove. Imaginar que a lua seria nova pode servir de alento, não haveria nada lá, caso houvesse um lá. A gente passa apressada mesmo debaixo dos guarda-chuvas. Têm medo da chuva, os humanos. Os que aparecem sem proteção correm como loucos e protegem os peitos. Não os recrimino porque sei que a água incomoda bastante as sobrancelhas e escorre para dentro das narinas. Não é uma piscina, não é um rio. É chuva e está tapando a lua nova. Uns poucos pedantes passeiam como se nada daquilo importasse, provavelmente porque levam algum pouco de amor nos bolsos e a chuva o faz inchar. Pedantes e esbanjadores, ora vejam só. No fim, eu gosto muito da chuva e do efeito sobre as pessoas. Quando chove eu quero estar lá junto dos pedantes e me sentir assim, “blasé”, homem-não-de-açúcar. o vento incomoda, a água nas sobrancelhas incomoda, o frio deixa uma certa vontade de dizer palavrões e cantar, mas é boa a chuveirada. Eu quero sair e cantar debaixo da chuva, mesmo que desafine, tussa e engula água suja. Mas não vou. No fim, não há nada lá.