A literatura é sempre um flashback de alguma coisa.
A gente pode escrever pra não chorar. Ou ainda, escrever exatamente porque chora (chorou/chorará) escondido. Me pergunto: é possível chorar de novo, depois de escrever?
Começa o flashback: Meus pais são bancários em bancos diferentes. Os bancos vendem produtos e muitas vezes sugerem esses produtos de acordo com o modelo de negócios do cliente. Todos os produtos bancários são uma coisa só, assim como bancos diferentes são sempre o mesmo banco. Todo produto é uma mentira porcamente elaborada pra vender o único produto que um banco é capaz de vender, uma dívida.
Departamentos de marketing todos voltados para convencer as pessoas de que “se você fizer uma dívida com nosso banco, será feliz!”. Só é possível ser próspero se endividando. Para ter dinheiro é muito importante dever dinheiro.
Conhecendo bancos e seus produtos fui até um deles e disse que era um jovem empreendedor. Por mais que eles sejam tarados com esse tipo de palavra (empreendedor, estratégico, valor agregado, sustentável), isso só não serve.
Por isso, antes, tive o trabalho de falsificar umas assinaturas do meu pai, tirar uns xerox de vários documentos e ajuntar com o dinheiro do meu salário de office boy para fabricar meu perfil de jovem empreendedor.
Escrevi um projeto, também. Muito bonito, aliás, uma mentira muito bonita, já que todo projeto que se apresenta a um banco é uma promessa de matança (está na história do mundo, não só nos bancos. Religiões, avanços científicos, grandes discursos, Os Sofrimentos do Jovem Werther… Sempre que alguém fez algo que deu muito certo, morreu gente pra caralho).
Você pede um dinheiro que deveria ser usado para comprar leite, roupas, construir casa, adquirir remédios e usa (ou diz que vai usar) para comprar um mostruário de piercings, alargadores e outros adornos corporais. Explica que as pessoas têm se interessado mais e mais por esse tipo de produto, que pode trabalhar de casa e visitar os clientes, que não pretende fazer os furos nas pessoas, só vender as jóias. E que pra esse sonho dar certo, precisa de dinheiro, uma máquina de fax, anúncio na lista telefônica, cartões, placa de PVC com aplicação de vinil em 2 cores.
Você apresenta uma falsa lista de possíveis clientes já sondados. Explica que o negócio é viável e que a dívida com certeza se transformará num negócio lucrativo e que aquela será a primeira de muitas dívidas e eu serei feliz e os gerentes serão felizes e o departamento de marketing continuará a vender sonhos e nos fazer de otários. E funciona.
Todas as vezes em que escrevi “você” queria dizer “eu”, então, aos 17 anos, consegui uma linha de crédito direcionada a jovens ambiciosos em busca de oportunidades.
Quando o dinheiro caiu, comprei uma garrafa de conhaque e fui atrás do João. Fomos pra praça da Assembleia, beber e conversar. Mostrei a ele os contratos e expliquei a história toda. Por fim, expliquei que só faltava o fornecedor.
“Você conversou com a sua mãe? Ela concordou em me ajudar?”. Ele fez que sim com a cabeça.
Não senti nenhum alívio. O conhaque aumentava o peso da culpa que eu carregava ali e eu tinha certeza que a Luciana carregava o dobro daquele peso. Eu sabia que precisa falar com a mãe do João. Eu tinha que dar um jeito.
Depois de matar aula e trabalhar de ressaca, fui até o condomínio do João, pra falar com a mãe dele. Ela me recebeu com um abraço apertado, sem sorrisos e nos sentamos como cúmplices. Ela apertou minhas mãos com força, me encarou muito séria e perguntou “vocês têm certeza?”.
Não. Eu não tinha certeza de nada. E Luciana, dizendo que tinha, provavelmente só tinha medo. Pânico. Pavor. Descontrole. Quem tem certezas aos 17?
“Sim, temos sim”.
“Você está com o dinheiro aí com você?”
Fui pego de surpresa com a pergunta. A coisa era muito mais rápida que o que eu imaginava. Pedi desculpas, falei que não sabia que já tinha que ter sacado.
“ok”, ela disse “A gente passa na agência e depois vai até minha amiga”.
Fiquei perdido no tempo. Tudo começou a se mover muito devagar. E a girar. Parei de raciocinar comecei a ser arrastado pela mãe de João, tentando de tudo pra não demonstrar que estava em pânico. Tenho certeza que ela percebeu, mas tenho certeza que, naquele momento, ela não se importava comigo.
Desci na agência, fui até o caixa e conferi. O dinheiro do crédito estava na minha conta recém aberta com uma autorização falsificada do meu pai. Tentei sacar tudo, mas o caixa eletrônico não deixou. Precisei enfrentar a fila e mostrar o contrato para o caixa. Ele notou que eu suava, apesar do ar condicionado na agência.
“Você não está bem, menino. Vai pra casa. Deixa pra comprar suas coisas depois.”
Acho que não respondi. Sei que voltei pro carro. A mãe do João me esperava fumando, em pé do lado de fora. Talvez ela estivesse nervosa, mas eu não sei dizer. Tudo pra mim era eu, naquele momento.
Ela ligou o carro e fizemos uma viagem infinita até Santa Luzia. Fomos até um hospital. Uma construção grande e triste, com todas aquelas janelas escondendo gente doente. Pessoas morrendo mais que nascendo. Parentes andando em silêncio pelos corredores. Fantasmas tentando entender o que tinha acabado de acontecer a eles mesmos.
Quando ela parou o carro, eu me sentia velho, cansado, com muito medo. Estava dominado pela sensação de que fazer algo ilegal era fazer algo muito errado.
“Me dá o dinheiro e me espera aqui no carro. Eu volto num instante.”
Acho que foi rápido. Enquanto ela estava no hospital, fiquei me perguntando se ela já tinha feito isso outras vezes. Se estava ali de novo. Se eu teria que voltar ali em algum outro momento da minha vida.
A mãe do João voltou, me entregou um saquinho de papel pardo com uma cartela de comprimidos. Voltamos no mesmo silêncio em que fomos.
Antes de ir embora, agradeci. Ela me pediu cuidado, falou pra pensarmos muito e se colocou disposta a ajudar no que fosse preciso.
Meu projeto empreendedor e ambicioso estava quase no fim. Faltava ligar pra única cliente da lista que era verdadeira.
“Oi”, eu disse. Ela respondeu “Oi”. Suspirei. Ela suspirou. Ficamos em silêncio.
“Eu dei um jeito, Luciana. A gente precisa se encontrar”
Mais silêncio. Mas as respirações estavam bem fortes.
“É o Cytotec?”
“É o Cytotec.”
“Amanhã, depois da aula. Não mata a aula. A gente conversa depois.”
Dizem que um feto não é um ser vivo antes de 3 meses de gravidez. Que o aborto não é o mesmo que um assassinato, quando ocorre nessa fase.
Os que pensam o contrário, normalmente acusam as mulheres de serem insensíveis, de não saberem cuidar delas e dos outros. Transformam pessoas desorientadas, tristes, normalmente jovens e imaturas em criminosas sádicas. Não sei como Luciana atravessou aquela noite. Não faço ideia de como ela atravessou todas as noites depois daquela. Mas naquela madrugada, acordado, eu me sentia um soldado de Herodes, decapitando criancinhas. Me senti assim, por muito tempo. Talvez eu ainda me culpe, mesmo sabendo que, naquele momento, aquela era a única coisa que conseguiríamos fazer sem destruir as nossas vidas e as de todos ao nosso redor. Mas eu só ia me dar conta disso alguns anos depois, quando acabei reencontrando Luciana.
Acaba o flashback.