::Ana Patrícia::

O vento no cabelo é a única coisa que me descansa do dia, da tarde quente, dos olhos das pessoas nas minhas pernas. Procuro a poltrona do fundo do ônibus, a mais alta, pra ficar de frente para a janela aberta e fico sentindo enquanto vem o vento e desliza, escorrega pelo meu pescoço e brinca com meu cabelo. A sensação do vento nas orelhas. A sensação do vento e do movimento do cabelo perto das orelhas. Isso não dilui a aula de inglês, o professor taradamente acercando-se de mim “the girl in the pink dress is beautiful, ISN’T SHE?” e derramando o olhar sobre mim e meu vestido encolhendo e encolhendo, minha mãe e o maldito colchão. Maldito colchão! Inferno de colchão! Compra a merda do colchão, quem vai pagar sou eu. E eu entrei e achei que o sujeito da primeira cadeira ia se atirar nas minhas pernas e começar a me morder. O calor e o vento no rosto me tranqüilizam e eu existo melhor. É tanto pra pensar e tanto pra fazer e eu não posso me dar ao luxo de me esquecer da realidade nem pra tomar um ônibus. O estranho sujeito da primeira cadeira lê e parece absorto. É tímido demais pra ser rude ou incômodo. Pare de ler e olhe pra mim novamente. Sente-se aqui, eu preciso conversar com alguém. Mas é covarde demais. Lança o mesmo olhar que o chacal, incapaz de atacar uma vítima maior ou viva. Deve agarrar as amigas que bebem demais, o desgraçado. Queria contar do meu dia. Queria dizer meu nome “Ana Patrícia. Porque uma das minhas avós se chama Ana Maria e a outra Maria Patrícia.” E você diria desenvolto “Então sua irmã se chama Maria Maria.” e nós dois iríamos rir. Se eu pudesse dizer do meu dia e da minha vida, eu não sentiria o vento, não sentiria seus olhares nem os de ninguém e tudo seria bom. Mas eu sou um objeto, ou sou vista de um intransponível campo de ar, como se você me visse através da TV. E eu não quero conversar com você. Suas piadas seriam ruins e pretensiosas. Mas por esse momento eu quero pensar que seu olhar não foi mecânico porque você está absorto em seu livro e me parece apenas tímido. E eu quero pensar que você é o marido ideal pra alguém que ainda não casou, tendo passado dos trinta e sendo violentamente lembrada disso a cada minuto por uma família que não esteve em seu casamento e não esteve com você quando o Carlos disse que precisa de distância e não esteve com você no dia em que o Leandro foi flagrado entrando no motel com outra. Eu queria poder contar que não quero me casar. A não ser com você da minha imaginação. Mas eu preciso descer e desça vez que olha você com ar curioso sou eu. E todos os sentidos de ser mulher se perdem quando nós temos certeza dos sentidos de ser mulher. O dia é ainda mais quente fora do ônibus.

::As pedras essas pedras::

Hoje é um dia tão estranho, mas tão estranho que quase que escrevo um poema do Carlos Drummond de Andrade. E tudo porém é tão positivo que tive medo de tomar banho numa cachoeira e medo de perder meu anel de brilhantes e descobrir que o anel havia voltado para meu lado, flutuando na água. Mas perdi uma chave na boate, o que significa que existem limites palpáveis para as coisas que se constroem no universo e essas coisas são boas.
E de repente Ismael se aproxima da Janela e percebe que chove. “Faz três dias que Deus não dá uma notícia…” ele pensa preocupado, enquanto evita levar seus pensamentos para outros lugares.
Senta-se em sua cama e tem um livro nas mãos e um livro embaixo das pernas. Um é “O Velho e o Mar” e o outro é “Moby Dick”, que lhe agrada por dividir o nome com o protagonista. Mas mesmo assim ele não é indiferente à chuva e por um momento o pensamento que ele procura evitar e que não tem relação com Deus ou com a literatura quase lhe ocorre. “Se ceder, serei infeliz”. As pessoas que negligenciam o amor das outras, ainda que inocentemente, são de alguma forma infelizes ou vingativas.

::Confissão de Carlos Manuel Henrique, poeta de Lamarínea, um dia antes de ser enforcado pelo rei daquele país::

Então são essa sombras, tantos esses vultos e muitas as impressões falsas que me definem como louco? E os sentidos de nenhum outro homem jamais lhe foi traçoeiro, jamais espalhou em seu cérebro mensagens ludibriosas? Ou é esse querer o impossível, o inverossímel, o não aceitar que as coisas devem ser como as coisas simplesmente o são, seria isso o fato responsável por fazer de mim, que amo a lua, um lunático? Como se o mundo se fizesse por essas pessoas todas que sabem o que há em seus armários e depósitos. Meus lábios se movem e no entanto, não há quem ouça o que canto. Mas se movem os meus lábios e eu sei a melodia que me encanta e isso me basta. A mim que consideram louco. Mas a solidão, essa solidão. Por ela sou capaz de me desfazer e fingir. Finjo que sou como todos os outros imbecis, limitados, obtusos, cegos, companheiros e amados. Quero isso, ser amado, quero. Há algo mais de ator nisso que de embusteiro, porque sei o que há no fingimento que deixa escapar que tudo é comédia para que vejam e assistam e não quero que me pensem assim, outro. Represento para que saibam que represento, que sou capaz de ser pequeno como os que considero pequenos e simples como os que amo pela simplicidade. Mas sorrio de minha comédia e me desgosta que outros não acompanhem minhas gargalhadas convulsas. Não decifro e não me preocupo com não conseguir embrenhar-me no enigma de não ser nada além de mim mesmo. Mas mesmo assim desgosto do ar sério dos que hoje me assistem como a louco e incurável. Não, não sou louco, companheiros. Sou são. E por isso é que vou viver, porque não há nada de torto ou mágico em ser como sou, apenas.