::segundo::

Amante número dois: João José foi apresentado como JJ. Risonho e empolgado, parece gostar que as pessoas ao seu redor estejam de bom humor. O tipo de pessoa que sempre tem algo engraçado ou gentil para ser dito.
Uma amiga, apaixonada por JJ, a convidou para um cinema, com ele. Se encontraram antes, para um happy hour e as trocas de olhares e outros pequenos flertes só não foram óbvios pra essa amiga.
Durante o filme, deram-se as mãos e ela sentiu o rosto afogueado e uma onda de tesão que quase a fez avançar sobre JJ. A amiga, sentada do outro lado, não notou nada suspeito.
Na saída do cinema, João disse que as levaria para casa. Ela resolveu brincar, perguntando “Para a casa de quem?” A resposta veio com a mão de JJ roçando de leve sua cintura e seu sorriso enorme dizendo “pra casa de quem você quiser!” A amiga não percebeu o gesto e riu com eles.
Ela ficou tão molhada que teve medo de que as pessoas pudessem notar.
JJ, um pequeno gênio da sedução, inventou uma desculpa na rota para que a amiga (pobre amiga) fosse deixada em casa primeiro e depois a convidou para uma saideira.
Ela se deixou conduzir e se encantou com cada um dos truques de salão mostrados por ele, cada opinião firme e curiosa sobre assuntos completamente sem importância e pela maneira como ele a ia envolvendo, como um gato que continua brincando com um ratinho que há muito já se entregou.
O ponto alto de JJ são suas mãos. Magras e de dedos longos, mas sem aparência frágil, possuem uma graça e agilidade que ele não deixou de demonstrar durante as horas que passaram no motel.
Hoje JJ namora a amiga, mas os dois ainda se encontram com frequência. Ela tem crises de culpa e ansiedade sempre que acabam o sexo, por isso ainda não sabe o que é dormir abraçada à JJ.  Talvez por isso tenha o pesadelo recorrente de que o marido os encontra enquanto dormem juntos e abraçados.

::interlúdio romântico::

Para meu filhote, Blenda:

“Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus -ou foi talvez o Diabo- deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.”

(Campo de flores – Carlos Drummond de Andrade)

::primeiro::

Amante número um: Maurício é um negro, muito grande e forte, rosto anguloso, cabelo curto e costeletas muito finas, emendadas com o cavanhaque. Se conheceram num forró e dançaram juntos durante quase toda a noite, mas não se beijaram. Nesse dia ela estava disposta a não beijar ninguém. O problema é que ele não saiu de sua cabeça e ela acabou arrumando uma desculpa para voltar até lá, na esperança de encontrá-lo novamente. Deu sorte. Os dois passaram o tempo conversando e dançando. Ela sentia seu cheiro e se lembrava dos comentários racistas da avó. Não se importava, é claro. Achava o perfume dele maravilhoso e o hálito de menta em seu pescoço fazia suas pernas falharem. Depois de se roçarem grande parte da madrugada, como manda o bom forró, saíram juntos dali direto para um motel.
Maurício é, talvez, o amante mais bonito, mas é um tanto desajeitado. Goza rápido e não sabe o que fazer direito com as mãos. De qualquer maneira ela foi se viciando nele, gostando do tempo que passavam juntos e do modo como ele fazia carinho em seus cabelos depois do sexo. Maurício era um homem bom e não exigia nada. Conversavam muito, mas nunca tocavam assuntos delicados, como política ou filosofia existencialista. Entraram numa quase rotina de encontros, que se resumiam a boates e motéis. Só uma vez o levou à sua casa.
Nunca passou pela cabeça dela deixar o marido para ficar só com ele.

::apenas um charuto::

Um homem entra em seu quarto e liga o aparelho de som. Fica deitado em sua cama, fumando e observando, ora o teto, ora a janela, onde só o céu, sem nuvens, sem sol, sem pássaros, é visível. A pergunta que ele se faz é a mesma que você começará a se fazer, se é que ainda não começou.

O homem se pergunta “por quê?”.