::sonho dos outros::

Homenagem ao Paulim Carcamano que sonhou um troço mais ou menos assim.

Ajeitei a mochila nas costas e firmei o olho na velha estrada ao entardecer. Queria lembrar as antigas loucuras da última intempestiva e alucinada vez em que estive aqui, mas meu cérebro alcoolizado e sedento (queria a boa e velha mãe água, como queria!) se recusava a passar as informações. A dificuldade principal residia no fato de nunca ter estado à pé nesse ponto do mundo, sempre cruzando essas estradas confortavelmente alojado num ônibus ou automóvel, buscando o paraíso, Passárgada, Paradise City, a Terra do Leite e Mel.
Dessa vez as coisas não saíam exatamente como planejado. O egoísmo humano enraizado em nossa cultura venceu a cortesia com a qual viajantes mais afortunados aceitavam nos transportar de carona de um ponto ao outro, aceitando, quando muito, ajuda para gasolina.
Mundo louco! Mundo injusto! Carros, caminhões e ônibus cortavam a grande estrada à qual parecíamos acorrentados, sem possibilidade de abandoná-la, de nos deslocarmos rumo ao nosso destino. E o que era o nosso destino? Meus irmãos de mochila esperavam que eu pudesse dizer isso a eles, como se o destino se traduzisse num objetivo que coubesse em uma simplíssima e terna pequena frase num livro de poesias: destino é logo ali.
Mas não, porque o destino era a própria estrada, o cansaço e nosso dinheiro absolutamente contado e recontado, a esperança de que ele durasse um dia além do previsto. Um dia.
O calor era o último suspiro cansado do dia e em breve os vagabundos, andarilhos, caminhadores e “flaneurs” se transformariam em assaltantes, estupradores e assassinos perigosos, então era importante olhar a estrada e lembrar, buscar dentro dos escombros da mente (a parte que não tinha sido destruída pelo vinho e pela ausência de água) um ponto de segurança, uma parada, um lugar onde houvesse espaço para sacos de dormir e que estivesse longe dos olhares maldosos de nossos predadores humanos. Thiago e Paulo, meus irmãos bíblicos, me encaravam apreensivos, tragando o que sobrara de nosso vinho, protegidos pela sombra que o ponto para ônibus intermunipais provia. Ainda estávamos em Minas Gerais.
Misteriosamente (porque tudo é mistério para um bêbado na tarde quente) Deus enviou as notícias que minha mente desesperada pedia: mais ou menos uns cinco ou seis quilômetros e pronto: eu sabia de um lugar, com uma casinha e vacas e natureza perfeitamente domesticada com um dono perfeitamente domesticado que não se incomodaria em nos deixar dormir em sua soleira. Era lá!
Nesse momento percebi que os outros dois pareciam conformados em simplesmente ficar onde estávamos por crerem que eu devaneava na estrada infinita e que não haveria nada por perto.
“Daqui à pouco vai escurecer”, eu disse, “Melhor a gente ir mais pra lá, onde tem um ponto melhor pra dormir.”

::Diários de um desdentado::

Curioso notar que assim como qualquer tipo de Miojo tenha gosto de “miojo”  e nunca do que é anunciado na embalagem, as sopas instantâneas obedecem a mesma lógica. A gente compra uma porção de sopinhas coloridas e toma sempre a mesma sopa, com alguns pedacinhos de cortiça boiando (e que eu tenho que engolir sem mastigar).
Enquanto isso uma peça de meio quilo de queijo minas me encara de cima do balcão da cozinha e sorri pra mim (ou melhor, se desmancha em gargalhadas…).

::pensem num sujeito mal-humorado::

Arranquei meus quatro dentes sisos hoje. Não foi bom, doeu e continua a doer. Estou com a perfeita sensação de quem acaba de levar uma surra, rosto inchado, ar abobalhado e zonzo. E pra piorar a situação tem um tijolo de pé de moleque feito com rapadura em cima da geladeira. Estou sofrendo.
Nunca havia me sentido tão parecido com um super-herói ou uma criatura folclórica. Porque eu bebi sangue feito um vampiro, os dentes estavam travados no maxilar como se houvesse uma cobertura de adamantium nos ossos, estou com um sorriso idêntico ao do Coringa (esse último, que parece mais um zumbi que um palhaço) e nada me tira da cabeça que se eu fosse um lobisomem, desses com cara de cahorro, haveria espaço pra essa merda de dente nascer e eu não precisaria arrancar.
Ah sim, esqueci de mencionar que a secretária da dentista achou que eu fosse o Tio Patinhas na hora de me entregar a conta. O valor da cirurgia é diretamente proporcional ao quanto dói.

Agora estou aqui em casa, com os dentes extraídos guardados num potinho. Têm raízes gordas e pedaços de gengiva grudados nas beiradas, os canalhas.