::Teddy’s sorrow – parte 1::

Morreu um professor de literatura que teve seu acervo vendido ao preço do papel pro Baiano, meu querido e analfabeto patrão. A equipe do sebo se mobilizou toda pra carregar a van com livros e trazê-los pra cá. E por equipe do sebo entendam: o Ismael aqui.
Como espólio de guerra, separei alguns livros que me interessavam, dentre eles “O amanuense Belmiro”, que mostra que a boa literatura sempre foi feita de sujeitos tímidos, melancólicos e descrentes do mundo. A linguagem é toda firulada, o Cyro dos Anjos (ou Belmiro, o que dá quase na mesma) se diz um “poeta lírico em prosa”, mas até nisso eu vejo muito cinismo e amargura. O livro é desses que deixam vontade de escrever, de contar algum tipo de história. E eu teria toda a boa vontade para contar uma linda, cheia de boas mensagens e lições, que fosse emocionante, misteriosa e tivesse um desfecho surpreendente, mas esse tipo de história não existe, pra nossa infelicidade. Então conto a história do Teodoro, que é comum, todo mundo sabe como acaba e se encontra em qualquer esquina, porque acho que é isso que vale à pena contar.
O Teodoro sempre foi um sujeito muito estranho, mas era diferente do menino bêbado que mora com a gente e que só faz merda. Quando tento montar a personalidade do Teodoro de antes, que é baseado no que ele (e às vezes a mãe dele) me conta penso num cara muito parecido com João, calado ao ponto das pessoas acharem que é mudo. O Teo fazia um esforço danado pra não existir. E nisso ele devia ser muito aplicado, porque nós praticamente alfabetizamos o Teodoro na casa velha, prova cabal de que ele não participava. De nada. Não tinha amigos ou grandes ambições. Apesar de ser um adolescente classe média, tinha um emprego de auxiliar de estoque numa firma de vidros (na prática, ele era carregador de caixas com copos e potes) que servia só pra ele passar menos tempo em casa e ter uma desculpa pra não sair com os colegas da escola e com isso não se envolver com sua vida nem com a vida de ninguém. Aliás, esse negócio de ir pra escola era só pra não contrariar ninguém em casa, evitar as possíveis discussões e cobranças.
Em resumo: Teodoro trabalhava o dia todo, estudava à noite, não saía e conversava pouco com os pais. Aos finais de semana assistia o Domingão do Faustão ou jogava vídeo-game. Na visão da maioria das famílias ele era o que se poderia considerar uma pessoa perfeita. Trabalhava sem precisar trabalhar, não tinha idéias mirabolantes ou revolucionárias, sem problemas na escola e evitava a todo custo qualquer discussão. Era um adolescente em fuga. Algo já dizia dentro dele que se ele fosse esperto o melhor era evitar a própria companhia.
Devia ser largamente usado como exemplo pelas tias que acusavam os próprios filhos de vagabundos irresponsáveis.
Pensando agora, nunca o vi falar dessa época com saudades. Ele diz que era seu jeito de se ausentar de tudo, de ter que pensar demais na vida, de ter que se emputecer com o mundo, com a família. Tenho medo de ele gostar mais de ser a pessoa que é hoje, não porque essa pessoa seja menos interessante, mas porque antes era confortável e agora é chão sujo de vômito, ressaca quase todos os dias da semana (se é que ele ainda se dá ao luxo de sentir ressaca) e depressão profunda. Sua mãe, ao contrário dele, sempre me joga na cara o filho perfeito que perdeu e me culpa como se tivesse sido eu o responsável por tudo. Seria muito bom se ela estivesse certa, porque aí era fácil resolver. Mas eu (tadinho de mim) não tenho o poder de destruir a vida de ninguém. Deus deixou essa tarefa nas mãos das mulheres.
Já ouvi essa história tantas e tantas vezes, com tão poucas variações que consigo me imaginar encostado no muro da escola assistindo a cena que acontece do outro lado da quadra (aquela famosa quadra com traves, cestas e uma rede surrada e rasgada no meio): Teo na fila pra comprar um pastel e um refresco amarelo com gosto de açúcar, quando percebe um sorriso que vem em sua direção diretamente de um cardume de meninas do primeiro ano. Eu vejo Teodoro ficar vermelho, dar uma ajeitada inconsciente e completamente estabanada no cabelo, entregando toda a timidez e tenho até a impressão de que dá pra notar que os joelhos do menino bobo vacilaram. E o sorriso persiste e quem sorri é Natália e Teo não sabia, mas já estava todo lascado.

::Psicologia de um vencido::

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!”

(Augusto dos Anjos – Monólogo de uma sombra)


Devaneios e pesadelos. Crises de tristeza e autopiedade. Euforia, empáfia e a certeza de não há um alicerce ou um centro que justifique ou suporte essa ou aquela vontade e tudo é passageiro. Mas a parte que dói mais não é a do problema psicológico que pode ser vencido através de reflexão, atitude e talvez alguns remédios. A parte que dói mais é querer existir e não ser, nunca. É saber que as regras do mundo são rígidas, que as pessoas do mundo são todas uma só e que estão (está) de acordo com as regras.
Há um claro retorno ao pensamento de alguns anos, às certezas de alguns anos atrás. Porque a vida é cíclica e a realidade é o que é e não pode ser alterada, só reinterpretada.

“Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como a cancro, a exigir que os sãos enfermem…”

(Augusto dos anjos – Aberração)

::Sobre Dinossauros, Galinhas e Dragões::

Bom, eu tinha que começar isso com outros dois eventos, mas a proscrastinação foi muita, então melhor começar por este e ir publicar os outros posteriormente. O pior é que se tratando de algo que recebeu mídia (matéria de jornal eu tenho certeza) pode ser que você TENHA ido ao espetáculo… se bem que estamos em BH, onde ninguém vai ao teatro, então continua sendo um evento que você (provavelmente) não foi.
Meus conhecimentos sobre arte contemporânea é idêntico aos do teatro contemporâneo, ou seja, não sei nada sobre eles. A única diferença que vejo nos dois é que depois de explicada, a arte contemporânea fica legal e o teatro tende a piorar…
Vamos ressaltar os pontos positivos: as atrizes são ótimas. Eu não conheço nenhuma delas, então não estou fazendo média. O texto, o corpo, o posicionamento, tudo foi lindamente executado, com aquele mínimo imperceptível de erros (eu mesmo, não percebi nenhum). Exatamente como num show sertanejo.
E exatamente como num show de sertanejo eu achei que foi tudo uma bosta, muito bem executada, claro. A idéia da peça é ser um fanzine (pra dar nome aos bois, o fanzine Idéias Bizarras) encenado. Um Frankstein de textos pseudo-jornalísticos, com piadinhas ácidas e temas irrelevantes “cool”, tipo a Caverna do Dragão e as posturas de palco dos ícones da música pop. Se idéia delas é uma crítica a esse modelo de sociedade que não consegue se aprofundar intelectualmente em nada, que idolatra idiotas que fundamentam a carreira e copiar a moda da década anterior e que é fragmentada ao extremo, bem, elas falharam miseravelmente, porque a peça é uma ode a isso tudo. Se o objetivo da peça era ser uma ode, aí eu refaço meu comentário sobre ter achado tudo uma bosta: acho que tudo foi feito pensando-se em fazer uma bosta de peça.
Mas preciso voltar à analogia com o show de música sertaneja: só o Rodrigo achou ruim. O público foi ao delírio. Deve ser porque eu não entendo nada sobre teatro contemporâneo, ou porque eu conhecia tão bem as referências que consegui recitar quase todos os motivos do frango ter cruzado a estrada junto com elas (será que só eu recebi aquilo por e-mail oitenta mil vezes?). Ou porque meu senso de humor esteja quebrado e eu ria do que ninguém ri e fique me sentindo perplexo, silencioso e sozinho quando todos a minha volta se contorcem às gargalhadas.
Então, se você é um indie-cult-pós-moderno sem posicionamento político definido, que tem vergonha de contar pros amigos que adora stand up comedy (ou isso já é cult e não precisa ter vergonha, assim como ser homofóbico e contra as cotas raciais?), aproveite pra assistir essa peça que nada mais é que um “stand up” com cenário e coreografias.
Todo mundo adorou! E eu fiquei pensando “ainda bem que o mundo acaba ano que vem”.

::O evento que você não foi – explicando a nova categoria::

Resolvi exercitar minha capacidade de resenhista, que nunca foi das melhores. Minhas vítimas serão eventos com pouca ou nenhuma divulgação, normalmente promovidos pelos Centros Culturais de Belo Horizonte.
A senvergonhisse (nesse caso, da prefeitura) é tamanha que eu poderia apostar que um possível leitor desse texto só saberia que BH tem uma rede de quase vinte centros culturais se ele for o funcionário da Fundação de Cultura.
Se não existe nenhum interesse político em divulgar a existência de Centros Culturais, a idéia de divulgar os eventos dos centros chega a soar jocosa. Aposto que existe um setor no departamento de comunicação da prefeitura destinado a rir e fazer piadinhas de humor negro com as solicitações de peças gráficas oriundas da FMC…
Mas mesmo sem a mão benta de nosso prefeito (ou talvez por isso mesmo), há coisa interessante rolando de segunda a sexta, no horário comercial e em algumas noites e finais de semana do mês e eu vou fazer o hercúleo esforço de falar sobre as que eu participar. Claro que, como tudo no blog, isso será feito de maneira aleatória descompromissada e tosca.
E como tenho que certeza que pelo menos um dos meus dois leitores que trabalham na FMC irão perguntar “porque resenhar eventos aos quais você foi e não divulgá-los antes de acontecerem?”, respondo que: bem, com uma média de três visitas diárias e possuindo exatos quatro leitores (donde dois são funcionários), acho que não vale à pena. O Bom Dia, Mundo cruel! é um bloco de notas virtual e não um veículo de comunicação.

::o mito::

Onde é que se encontra a pessoa que ainda ontem vivia tão lindamente minha vida?
Perguntei isso ao Osmar, que se contentou em me encarar com ar de entediado e voltar seus sentidos para uma maçã. Maldito coelho temperamental. Ou talvez o temperamental seja eu.
Fico sentado na sala com um grande caneco de café observando o limo nas paredes. Ao longo dos dias o limo cresce, resseca, depois cresce de novo e a casa vai adquirindo camadas e camadas de verde. Isso não é bom, mas entre observar-sentir e me levantar-limpar acabo optando pela alternativa um. As ações me parecem fúteis, mesmo quando todo mundo lá fora diz que eu seria salvo por elas.
O fim do café no caneco indica que é hora de trabalhar e minhas viagens recomeçam agora. Apanho a bolsa e vou enchendo com sonhos. Acho a expressão ridícula, porque muita gente gosta da metáfora “levar sonhos na mala”. Pra mim isso é uma imagem poética pobre e batida. Mas é meu emprego e nem sempre podemos trabalhar só com o que a gente gosta. Osmar se aproxima para observar meu movimento. Aproveito e peço a ele que escolha alguma música. Enquanto isso percebo que há no canto do quarto um canteiro novo.
Um grande vaso cheio de terra e mudinhas. Me aproximo e percebo que são todas pequenas plantas de um tom avermelhado que se chocam com a sobriedade de todas as minhas outras coisas.
De onde será que veio isso? é o que me pergunto, mas nenhuma resposta brilhante ocorre. Mas me parecem boas e delicadas as mudinhas. Há também um bilhete, mas sempre sei que bilhetes são tudo, menos esclarecedores. São alguns versos de um poema de Drummond:

“Fulana diz mistérios
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto, sequer me vê.”

“Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo

tal como é ou deve ser:
branca, intata, neutra, rara
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.”

“Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavando.”

“Já morto, me quererá?
Esconjuro, se é necrófila…
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.

Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.

Fulana é toda dinâmica
tem um motor na barriga
suas unhas são elétricas,
seus beijos, refrigerados,

desinfetados, gravados
em máquina multilite
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós”

São apenas versos soltos e o poema é muito maior. Mesmo assim me detenho por um bom tempo na leitura, nas descrições dessa Fulana e na escolhas propositadas dos versos e por fim creio que isso também é matéria de trabalho, portanto, vai na mochila.
Destraído com o vaso e o poeta, não percebi que Osmar tinha colocado jazz no som e mastigava novamente a maçã. Maça vermelha, como as plantas, o que será que esse coelho me esconde?
Depois de me despedir abro a porta e encaro firmemente o pinheiro do quintal. Deixo a mochila no chão, aprumo o corpo e mando o pé, com toda a minha força, bem de encontro ao tronco.
Machuco o pé e saio pulando de dor. Osmar me observa com ar de alívio e reprovação. Recoloco a mochila e me vou. Mas nós dois temos a absoluta certeza de que vou voltar.